Os motivos e os males do sexismo na indústria de games

Esta reportagem foi publicada originalmente no Arena iG em 30 de março de 2012.

Não é de hoje que ouvimos falar que os games são sexistas ou misóginos. Motivos para isso não faltam: personagens femininas são, quase sempre, retratadas com roupas justíssimas e curvas exageradas à mostra e títulos de ação, com foco em combate e violência, ainda são os mais celebrados entre o público entusiasta – composto majoritariamente por jogadores do sexo masculino.

Para uma indústria que luta pelo reconhecimento dos jogos como mídia e forma de arte de relevância cultural, social e econômica, a questão do gênero nos games, vista muitas vezes com descaso, se torna cada vez mais importante. O simples argumento de que jogos são machistas, porém, pode não se passar de uma tremenda ingenuidade. Ao olharmos de perto e adentrarmos a fundo na questão, vemos que o problema é bem maior e mais complexo do que parece, e abrange não apenas a indústria em si, mas toda a sociedade e a cultura na qual os jogos estão inseridos.

Uma indústria de homens?

Estudos indicam que, no ambiente de trabalho, equipes diversificadas, compostas de homens e mulheres de diferentes gostos e perfis, tendem a inovar e experimentar com mais frequência, enquanto grupos homogêneos são melhores em explorar o que já existe. Isso soa particularmente verdadeiro na indústria de games tradicional, composta por uma maioria esmagadora de homens, tanto nos cargos mais altos (executivos e diretores), quanto nos intermediários (designers, programadores e artistas).

A diferença de gênero chega a níveis gritantes: uma pesquisa publicada no final de 2010 indica que a proporção de mulheres trabalhando na indústria de videogame do Reino Unido caiu de 12%, em 2006, para 4% em 2009. “Eu vejo as mulheres na indústria de games como uma commodity – bem escassa e altamente desejada”, diz Kirsten Forbes, ex-produtora executiva da Radical Entertainment (de Prototype) e uma das fundadoras do Silicon Sisters Interactive, estúdio cuja filosofia é criar jogos “de mulher para mulher”.

Ela afirma que desde que começou a desenvolver games, há 15 anos, nunca viu esse número passar de 10% – “com exceção de algumas empresas, como a Maxis (de The Sims e Sim City), que possui aproximadamente 40% (de mulheres)”. A situação é ainda menos animadora quando percebe-se que boa parte das poucas mulheres que trabalham com games não estão diretamente envolvidas na criação, mas sim em áreas como recursos humanos e marketing.

Kirsten Forbes (à esquerda) e Brenda Bailey Gershkovitch, fundadoras do estúdio Silicon Sisters, que desenvolve jogos voltados à mulheres

“Quanto maior é a equipe, mais ela tende à diversidade, tal como o mercado de ações. Então, para pequenos grupos, é muito fácil uma homogeneidade se transformar em uniformidade e monotonia. E uma vez que as ideias que grupos homogêneos trazem para a mesa são semelhantes, não há novos pensamentos, perspectivas. Todos estão operando com preconceitos, experiências e filtros mentais semelhantes”, explica Forbes.

A situação se complica quando as empresas encontram dificuldade de preencher as vagas com mulheres, sendo obrigadas a continuar contratando homens – e consequentemente direcionando seus jogos ao mesmo público masculino de sempre, gerando assim um círculo vicioso. A indústria da computação passa por um fenômeno similar e igualmente preocupante: desde os anos 1980, quando as mulheres compunham 40% dos profissionais da área, o campo tem cada vez menos participação de mulheres. De acordo com uma pesquisa de 2009, apenas 12% dos bachareis em ciências da computação são mulheres, nos EUA.

Segundo Forbes, “esse fenômeno não é exatamente paralelo à indústria do videogame pois não apenas empregamos cientistas da computação e programadores, mas também designers, artistas etc. Ainda assim, essa tendência da área da computação é um exemplo de como um campo dominado por um único gênero se torna cíclico – conforme as mulheres o abandonam, ele se torna mais dominado por homens, então cada vez menos mulheres entra e o ciclo se fortalece.”

A co-fundadora da Silicon Sisters, Brenda Bailey Gershkovitch, reforça: “A dificuldade de contratação em ambientes em que existe pouca diversidade é o simples fenômeno humano de que nós tendemos a contratar pessoas como nós mesmos. Somos inclinados a construir estruturas homogêneas, e acredito que isso é parte do porquê as coisas têm estagnado com um baixo número de mulheres e minorias na indústria.”

“Políticas de contratação que encorajam a diversidade podem ajudar, mas também podem causar efeitos negativos", explica Gershkovitch. "Conheço um estúdio muito famoso que tinha 90 homens trabalhando e as únicas mulheres estavam na área de RH e marketing. Eles queriam especificamente contratar mais programadoras mulheres, então deliberadamente procuraram uma e a contrataram. Ela pediu demissão em apenas um mês. Contrataram outra, que também saiu. Depois que uma terceira programadora mulher pediu demissão, eles concluíram apenas que mulheres não querem trabalhar com videogames, mas na verdade, elas se sentiam muito isoladas como sendo as únicas a trabalharem em um grande grupo de programadores, e não estavam felizes lá. Li pesquisas interessantes que mostram que se você quer contratar funcionários diferentes, contrate pelo menos três pessoas do seu alvo demográfico.”

Clube do Bolinha

O preconceito é, naturalmente, o pior dos problemas que as mulheres podem enfrentar ao trabalhar com games. Flávia Gasi, jornalista de games e apresentadora que já passou pela MTV e Rede TV, diz já ter sido discriminada, mas não pelos colegas de trabalho: “Me lembro da primeira edição da Revista Oficial do Xbox 360. A gente recebeu muitas cartas dizendo que eu era mulher e não podia fazer parte da equipe, que meu lugar era na cozinha e coisas do tipo. O que me incomodava é que a revolta não era por conta de algum artigo, mas pelo fato de eu ser mulher. Sabe-se lá se as pessoas que reclamaram chegaram a ler o que eu escrevi", reclama.

Forbes dá um outro exemplo: “Já ouvi uma história de uma garota que enviou um currículo a uma empresa e foi completamente ignorada. Depois, enviou o mesmo currículo com o nome de seu namorado e foi convocada para uma entrevista.”

Mas, como já diz o ditado, o que não mata, fortalece: “Por conta desse tipo de preconceito, eu decidi que ia batalhar e estudar mais, então, certamente, elas acabaram me ajudando”, diz Gasi. Por outro lado, ser mulher na área de games pode ser um diferencial e trazer suas vantagens. Forbes admite: "Nós nos destacamos em meio à multidão. Sou reconhecida e lembrada facilmente pelos outros, meu currículo se destaca por eu ser uma mulher, e sempre fui promovida e remunerada justamente, assim como meus companheiros masculinos".

Para Gasi, “gosto de imaginar que as oportunidades que tive aconteceram porque acreditaram no meu trabalho, porque eu adoro o que faço e nunca parei de estudar. Mas não sei dizer se o que teve destaque foi o fato de eu ser uma mulher ou de eu tentar ser uma boa profissional – espero que tenha sido a segunda opção (risos)".

A arte imita a vida

De acordo com a psicanalista e escritora Regina Navarro, a sociedade atual ainda carrega muito dos preconceitos estabelecidos há mais de 4 mil anos, no início do patriarcado. “O patriarcado ainda se estende por todo o planeta, com exceção de alguns povos. É um sistema que começou com o domínio dos homens sobre as mulheres, inclusive sobre a reprodução”, explica – daí o machismo. “Com o surgimento da pílula anticoncepcional, esse sistema recebeu seu golpe fatal, pois a mulher passou a ter filho se quiser e como quiser. O que a gente está assistindo é o desmoronamento do sistema patriarcal. Mas como toda mudança, isso é demorado. Pode levar 200 anos, mas já temos muitos sinais – homens cuidando de casa e dos filhos, por exemplo. Os valores patriarcais começam a perder a força. O homem machista está em declínio.”

Assim, por estar contido em uma sociedade e fazer parte da cultura, nada mais natural os jogos refletirem seus valores e suas mudanças. “Acho que questões que fazem parte da sociedade tem espaço para serem discutidas em games, que é uma mídia associada à cultura. Assim, gênero e sexismo estão em pauta, porque existe uma demanda da sociedade em discutir isso. Da mesma forma que existe espaço para outras questões, como a homossexualidade e transsexualidade”, disse Gasi, trazendo à tona a recente inclusão de possibilidade de um relacionamento homossexual masculino em Mass Effect 3 e a lutadora transsexual Poison, de Street Fighter X Tekken.

Embora a questão das mulheres na indústria de games ainda precise de solução, quando se fala do público que consome jogos, a história é diferente. A partir dos anos 2000, com a popularização dos jogos casuais pela internet, o surgimento do Wii, as redes sociais e as plataformas mobile, os games se tornaram cada vez mais democráticos e acessíveis. O resultado disso foi uma demanda maior por títulos mais simples, diversificados e com temas “positivos”, que agradam especialmente as mulheres.

De acordo com um estudo realizado em 2011 pela Entertainment Software Association (ESA), as mulheres já compõem 42% do público que joga videogame com frequência. Já quando o foco são os jogos sociais esse número salta para 54%. “Uma tendência animadora é que tanto meninos e meninas norte-americanos até 12 anos já têm familiaridade e acesso a computadores”, diz Forbes. Era comum as garotas não terem acesso a computadores nos últimos 20 anos e, portanto, não adquirirem gosto e habilidade com eles. Atualmente, vemos que ambos os sexos possuem oportunidades e habilidade iguais com os computadores, o que é de extrema importânica para o sucesso profissional, uma vez que quase todos os trabalhos exigem proficiência com computadores. Então acredito que, assim que essas crianças crescerem, veremos uma proporção de gêneros como esta nos negócios.”

Com um público que consome videogame cada vez mais equilibrado, com mais mulheres produzindo games no futuro, uma linguagem cada vez mais compreendida e uma mídia mais madura, deixaremos de ver jogos como o recém-anunciado Girl Fight, que coloca mulheres seminuas em roupas minúsculas para brigar? Provavelmente não, mas não há dúvidas de que veremos personagens femininas (e masculinas) cada vez mais bem construídas também, assim como uma melhor abordagem dos mais variados temas.

“Acredito que os games mais novos tratam melhor a questão do sexismo”, diz Gasi, que citou como exemplo a personagem de BioShock Infinite, Elizabeth, muito mais humana e expressiva do que as personagens voluptuosas que costumamos a ver por aí – e como alguns jogadores, acostumados com a objetificação da mulher no videogame, estranharam o fato. E com personagens mais humanos, é, inclusive, mais fácil explorar a sexualidade de forma mais madura, sem cair na apelação - e podendo agradar a homens e mulheres, como diz Gasi: "Os meninos podem achar a Lara Croft uma lindona. Eles tem o direito, afinal eu acho o Nathan Drake muito sexy.” A verdade é que jogos realmente bons transcendem o gênero. Gasi dá os exemplos: "A primeira pessoa que nunca jogou Mario, não se encantou com Journey, que não sentiu nada quando a Boss morre em Metal Gear Solid 3, quando Dom descobre onde está Maria em Gears of War, quando Ico encontra Yorda, ou quando a Kara pede para não ser desativada na nova demo da Quantic Dream (dentre tantos outros exemplos), que atire a primeira pedra. Não importa se é menino ou menina."

Reportagem publicada originalmente no Arena iG em 30/03/2012.